sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Contra a Bipolaridade

A ocorrência de segundo turno costuma ser saudada como oportunidade para debater melhor os temas e conhecer melhor os candidatos. Mas isso só é verdade até certo ponto – e para chegar até esse ponto seria necessário que os candidatos fossem questionados a fundo e respondessem sem fugir. Logo, dificilmente estas semanas adicionais poderão mudar alguma coisa, seja para qual lado for. Se mudarem, não será porque o debate foi melhor e os temas foram aprofundados, mas por alguma eventualidade de impacto, também remota nesse prazo. Há quem diga que a falta de ideias da atual campanha é fruto de amadurecimento da sociedade, mas nem a sociedade está madura assim nem os candidatos parecem ter mais que uma ou duas ideias.

Basta ver o que causou o segundo turno, numa pontual mudança de rumos tão súbita que os institutos de pesquisa não souberam – embora devessem – captar. Não se tratou substancialmente de uma ascensão da oposição, nem mesmo de Marina Silva; tratou-se do medo de um setor da sociedade, os evangélicos (que praticamente dobraram sua representação política nestas eleições), a respeito da posição da ex-marxista Dilma Rousseff sobre o aborto. A candidata da situação já vinha perdendo alguns votos, por causa de revelações sobre o ministério que ocupou até o início do ano, e Marina já tinha subido do patamar de 10%, inclusive entre as pessoas mais instruídas, simplesmente por não ser nem PT nem PSDB e soar menos artificial. Mas a inflexão que impediu a vitória em primeiro turno não veio da onda verde, mas da onda vestal.

Isso criou um problema para Dilma, claro, pois ela sempre evitou ou foi ambígua no tema, certamente por orientação de companheiros como o presidente Lula, que conhece bem o conservadorismo brasileiro. De nada adianta, agora, esperar que o tema seja discutido a sério, apesar de suas implicações sociais. A equação já está montada: se Dilma disser que é a favor, perderá muitos votos; se disser que é contra, não ganhará quase nenhum. Daí a dizer que isso poderá levar José Serra a arrebatar mais de 80% dos votos de Marina e virar o placar no segundo turno, o que seria virada raríssima na história, vai uma distância gigantesca. Só os bajuladores podem ter certeza de que os tucanos saibam reverter tantos votos em grotões aonde nunca chegaram. E, se Lula foi useiro em desmentir afirmações do passado, por que ela faria diferente?

Não ter vencido no primeiro turno, ainda assim, poderia trazer lições para Dilma, sua equipe e seu futuro. Ela poderia entender que a arrogância do “já ganhou” também a atrapalhou; até Marta Suplicy, quem diria, recomendou a ela que vista “sandálias da humildade”. Melhor ainda, poderia pôr em dúvida o poder que os membros do governo atribuem a seu “líder espiritual” de adivinhar e comandar os desejos do povo. Pouco mais da metade dos quase 80% de aprovação de Lula foi transferida para sua candidata. E muitos dos votos que definiram o segundo turno não vieram da “zelite”, mas da classe C, a que mais cresceu nos oito anos de governo Lula – uma ironia que dá o que pensar.

O Brasil não está dividido em dois, mas em muitos; tem uma complexidade que não cabe em pesquisas de opinião (que refletem o momento da economia, mais do que qualquer virtude pessoal) e mapas eleitorais bicolores (há muita gente que vota em situação e oposição ao mesmo tempo; há até quem escolhe um partido diferente para cada cargo). A maior tolice é querer qualificar essa votação com recortes ideológicos nítidos: uns dizem que há mais pobres votando em Dilma porque Lula “governou para os pobres” (Eike Batista entre eles?), outros porque seriam os menos instruídos (e aí não há como explicar que os “desenvolvidos” paulistas tenham eleito Tiririca com 1,4 milhão de votos). Por trás da polarização precária, há o desentendimento da atualidade brasileira.

Como já escrevo aqui há tanto tempo, não se explica a popularidade de Lula apenas pelo Bolsa Família (como alega a suposta “esquerda”, como a que dirige institutos como o Ipea) ou por seu carisma quase religioso ou autoritário (como diz a suposta “direita”, acompanhada por alguns ex-lulistas que se sentiram traídos). Ela vem do fato de que ele, contrariando a expectativa de muitos, continuou e aprimorou a política econômica de FHC: manteve o tripé fiscal, cambial e monetário; não reverteu nenhuma privatização, colhendo frutos como a densidade telefônica, que saiu de 10% em 1995 e chegou a 100% em 2010; ampliou os programas sociais, multiplicando o orçamento do Bolsa Família para R$ 12 bilhões, e as reservas financeiras, para aplauso do mercado internacional; e expandiu o crédito, talvez a mais importante política que adotou, beneficiando muito aquela classe C.

Se a agenda da sociedade toda, e não apenas da classe política, não estivesse amarrada a essa leitura bipolar da realidade, a atual campanha poderia ter usado mais tempo para falar de desafios em vez de legados. Os dois governos, afinal, nem sequer enfrentaram questões fundamentais: aumentaram os impostos, mas pouco melhoraram educação e infraestrutura; fizeram alianças com velhas oligarquias, mas se comportaram como elas, fomentando a corrupção; deixaram saneamento básico, sustentabilidade ambiental e inovação tecnológica em quinto plano, etc. O atraso mental, em outros termos, reforça o atraso social. Não são três semanas a mais de uma campanha anódina – a qual só ganhou algum tempero por fatores circunstanciais – que vão mexer sensivelmente com isso. O debate deveria melhorar, sobretudo depois das urnas apuradas.