segunda-feira, 4 de julho de 2011

A primeira matéria de um foca

O gravador parou. Minha mente trabalhava na velocidade da luz. A mão,
por sua vez, tentava incansavelmente seguir o pensamento. Sabe aquele
frio na barriga? Aquele que acompanha seus maiores sonhos? Ele estava
ali. Da mesma forma que o dicionário de português sobre a mesa, o
manual do foca, o Google, o café com aquele típico odor viciante e
toda a minha transpiração por escrever uma matéria que emplacasse na
mídia.

Lembro-me bem das críticas construtivas de grandes mestres que tive o
prazer de chamar de professor. Lembro-me também dos puxões de orelha,
dos textos mal escritos e das teimosas vírgulas que se espalhavam
erroneamente nas frases. Em suma, todo aquele árduo trabalho de
aperfeiçoamento valeu o esforço. Sou jornalista.

Envolto em pensamentos, a caneta corre, a mão corre, a mente divaga na
melhor sobreposição de ideias e léxicos simples. Será que estou sendo
conciso e claro o suficiente? A borracha entra em ação. Engraçado
estar sentado ali, sob o olhar dos jornalistas veteranos. Vê-los
escrever me transporta para um mundo em preto e branco, jamais brando,
jamais neutro, mas quase perfeito. Alguém me cutuca: “Foca, o chefe me
pediu para avisá-lo sobre o seu deadline, ele está mais apertado.
Talvez seja necessário um pescoção”. Um sorriso nervoso e teimoso se
fixa em minha face, tal como o pensamento “pseudopositivo”: um
pescoção e um voto de confiança do diretor ou o meu próprio pescoço em
uma bandeja de garçom.

Lembro-me dos prazos da faculdade, dos trabalhos em grupo e
individuais. De Max Webber, Karl Marx, João Batista Natali, José
Hamilton Ribeiro, entre tantos outros grandes mitos do jornalismo. E
quanto a mim? Será que, num futuro próximo, estarei estampado em algum
best-seller do tipo: “A História de um Foca de Sucesso”, “As
Peripécias de um (des)focado” ou “O Foca de Neve e os Narizes de
Cera”? Continuo escrevendo a matéria, envolto em pensamentos.

É engraçado observar certas particularidades do mundo da comunicação.
Estamos em constante rotatividade no mercado e, sinceramente, ele
exige do jornalista cada vez mais e, infelizmente, paga cada vez
menos. O que sobra de tudo isso é o amor à profissão que não exige
diploma. Assessoria, impresso, web, telejornalismo. Todos nós lutamos
por um mundo melhor, utópico para os veteranos, mas para mim isso
ainda continua muito latente.

Desta vez o telefone toca: “Foca, pois não?”. Uma voz conhecida do
outro lado da linha: “Oi, querido, consegui o telefone pela editoria
de cultura. Comeu direitinho?”.

Era a senhora minha mãe.

Após fingir se tratar de um assunto de extrema importância, desliguei.
Dessa vez o meu pescoço quase caiu, ruborizado. Lembrei-me do filme
“Jogue a mamãe do trem”. Sorri. Continuei escrevendo.

Brincadeiras à parte, cafés à parte, suadouro de todo e qualquer
novato em sua primeira matéria: lá estava ela. Com um formato limpo,
claro, desenrolado. Um corpo lindo de matar. Era a musa da minha vida
e melhor, quase pronta para ir à sala do Revisor. Uma pincelada aqui,
um bordado ali, uma costurada na fala de fulano e, pronto! Paixão
avassaladora. Mal podia acreditar que depois de todo um expediente
puxado resultasse uma matéria tão bem escrita. Quase fui aos prantos.
É sério.

Já na sala do Diretor, sentei-me em sua frente e não consegui segurar
os pequenos espasmos imperceptíveis e calafrios microscópicos. Na sala
éramos três: eu, o Diretor e o maldito frio na barriga. O seu olhar
compenetrado sobre a matéria durava uma eternidade, maior até que o
tempo que tive para escrevê-la.

Por fim, o feedback:

— Foca, a matéria está linda! Sublime! Vamos publicar, sim. Parabéns,
garoto, você vai longe.

Fechei os olhos por um instante e nesse pequeno espaço de tempo, entre
o fechar e o abrir dos olhos, senti o frio na barriga se esvaindo de
mim e deixando apenas o gosto de missão cumprida. A saliva pesava na
boca da mesma forma que a palavra “sublime” latejava em minha mente. A
matéria seria publicada.

Desde então, meu gravador jamais parou.




Por Ana Paula Guedes

*Foca, em linguagem jornalística, é o jornalista bem no início de
carreira, recém-saído da faculdade.

**Pescoção, no universo das redações, é a jornada dupla de
sexta-feira, quando, além do jornal do sábado, os jornalistas também
precisam finalizar a edição de domingo. O expediente normalmente se
estica longamente madrugada adentro, daí a expressão.